domingo, 19 de outubro de 2025

Alice Greenfingers


Lá nos meus anos de infância, tinha um joguinho que eu e minha irmã – três anos mais nova que eu – simplesmente não conseguíamos largar no computador de tubo lá de casa: Alice Greenfingers. Descobrimos ele meio sem querer, talvez num site de joguinhos grátis. Era um jogo bobo, todo coloridinho, leve, simples até dizer chega. E talvez por isso mesmo… tão impossível de largar.

Você começava com um pedacinho de terra e plantava flores, cenouras, tomates. Usava uma pá pra cavar, um baldinho pra regar, colhia na hora certa e levava tudo até uma barraquinha de vendas. Não tinha história, não tinha personagens memoráveis, nem música marcante – a musiquinha era extremamente repetitiva, se não me engano. Mas os sons... ah, os sons. Até hoje, se eu fecho os olhos, ainda ouço aquele "clac" perfeito da colheita, o som da terra molhada sendo regada, o barulhinho seco da pá afundando no solo. Os barulhinhos da barraquinha de vendas. Era quase como um ASMR, antes mesmo de esse termo existir.

Apesar de bem rudimentar, Alice Greenfingers era surpreendentemente funcional. Os gráficos eram simples, mas tudo ali era limpo, claro, organizado. A interface funcionava, ponto. Nada travava, nada bugava, tudo fluía com uma clareza quase pedagógica. A sequência, Alice Greenfingers 2, lançada em 2008, seguia o mesmo caminho, só que ainda mais serena – como se o jogo soubesse que a gente não queria correria, nem metas difíceis, nem competição. Só cuidar de uma hortinha com calma e, sei lá, deixar o mundo lá fora um pouquinho em suspenso.

Hoje é fácil ver que ele fazia parte dessa linhagem de jogos de fazenda, como Harvest Moon ou Stardew Valley. Mas ao contrário deles, Alice não tentava simular uma vida rural complexa. Não tinha casamento, nem amizades, nem mineração, nem mapas extensos pra explorar. Só terra, sementes, ferramentas e tempo. Nada além do essencial. E talvez por isso mesmo ele acerte tão em cheio. Existe algo de muito honesto nesse minimalismo. Tem gente no Reddit que diz que foi “o primeiro jogo de farming que joguei na vida”, ou que “nenhum outro jogo chegou perto da paz que Alice Greenfingers proporcionava”. Muita gente tenta rejogar hoje, mas o bichinho não roda bem em sistemas novos. Uma pena.

Voltar a pensar nesse jogo, tantos anos depois, me faz perceber como algumas experiências simples podem deixar marcas profundas. Eu e minha irmã revezávamos no mouse, decidindo o que plantar, onde colocar os girassóis, se valia a pena arriscar numa árvore frutífera. Era só um passatempo. Mas um dos nossos preferidos. E talvez por isso ele ainda viva na minha memória com tanto carinho. Às vezes tudo o que a gente precisa é isso: um cantinho de terra, um baldinho de água... e aquele barulhinho certo, na hora certa.

Confesso que ainda dá uma vontadinha de jogar.

Para assistir ao vídeo do gameplay completo, é só clicar na imagem abaixo. Por outro lado, se você quiser baixar e jogar, é só clicar aqui.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Rá-Tim-Bum (1990)


Existem memórias que parecem sonho. Uma delas é o Rá-Tim-Bum original, aquele programa da TV Cultura que nasceu em 1990 e, por quatro anos, reinventou o modo de conversar com as crianças. Quando se fala em “Rá-Tim-Bum” hoje, quase sempre a lembrança corre direto para o castelo – o mais famoso, o mais celebrado, o mais reprisado. Mas antes do castelo existia outro mundo. Um mundo mais simples, mais experimental, que talvez só as crianças dos anos 90 ainda consigam lembrar com nitidez.

Esse primeiro Rá-Tim-Bum não tinha uma história contínua nem personagens fixos. Era uma colagem de pequenos quadros educativos, cada um ensinando algo diferente: como funciona um objeto, como cuidar de si, o sentido das palavras, as curiosidades do mundo. Tinha humor, música, cores exageradas e uma imaginação que não dependia de grandes efeitos. O programa misturava arte e pedagogia com uma atenção artesanal que hoje parece improvável. Tudo era pensado com cuidado, das transições sonoras à escolha das cores. Assistir ao Rá-Tim-Bum era como abrir uma caixa de brinquedos e descobrir que dentro dela cabia o mundo inteiro.

Mas a memória é traiçoeira. Quando o famoso "Castelo Rá-Tim-Bum" estreou em 1994, levou consigo a força simbólica do nome e o transformou em algo maior. O castelo virou fenômeno cultural – nacional e internacional! –, ganhou exposição, produtos, reexibições, e até hoje é reconhecido por quem nem era nascido na época. Já o Rá-Tim-Bum original ficou guardado num canto mais silencioso da história, lembrado apenas por quem viveu aqueles anos de TV aberta educativa. É curioso pensar que o programa que deu origem ao nome acabou ofuscado por quem o herdou. Enquanto o castelo se tornou monumento, o original virou lembrança distante – e talvez aí esteja o seu verdadeiro encanto.

Rever o Rá-Tim-Bum hoje não é apenas relembrar. É enxergar o esmero de uma produção feita com poucos recursos, mas com ambição criativa. É notar o capricho dos figurinos, a inventividade das transições, a coragem de experimentar formatos que nem existiam. E é também encarar o estranho: cortes bruscos, gestos teatrais demais, sons fora de sincronia. Tudo isso compõe uma doçura meio bizarra, um retrato fiel de uma época em que a televisão infantil ainda estava tateando possibilidades.

O Rá-Tim-Bum original nunca quis ser eterno. Era um programa que acreditava, honestamente, que aprender podia ser divertido, e que o saber cabia num quadro de dois minutos. Seu valor agora está na nostalgia – nessa lembrança que surge quando alguém menciona o nome e, de repente, a gente sente o cheiro da tarde, o som da vinheta, a textura das cores. É um fragmento de um Brasil que via futuro na educação e acreditava que imaginação e conhecimento podiam caminhar juntos.

Eu ainda quero escrever sobre o Castelo Rá-Tim-Bum, claro – ele merece um espaço próprio. Mas antes, é importante lembrar desse Rá-Tim-Bum clássico. Foi ele que plantou a semente. O castelo ergueu as torres, mas o chão veio daqui. E quem teve a sorte de crescer assistindo, mesmo que já nem lembre de tudo, sabe o que ficou: aquele tipo raro de magia que o tempo não apaga, só embaça de leve, para que a gente possa reencontrar com mais ternura.

Abaixo, segue uma lista de links para vídeos de cada um dos quadros que compunham o programa e que entraram para a nostálgica história da TV Brasileira dos anos 1990.

Cadê o Léo? (1989)


Cadê o Léo, o Léo onde é que está?” A frase parece boba, quase uma cantiga de criança qualquer. Mas quem cresceu nos anos 90 e teve contato com o especial "Um Banho de Aventura" talvez sinta um arrepio involuntário ao ouvir esse verso. Produzido pela TV Cultura e exibido originalmente em 1989, o programa foi concebido como um telefilme infantil, na época sendo exibido em cinco partes ou episódios. Alguns dizem que foi a primeira aparição do Júlio do Cocoricó na TV. A canção-tema era tão marcante que o telefilme ficou popularizado sob o nome "Cadê o Léo?".

Desde os primeiros minutos, Júlio está atrás de Léo, seu leão de pelúcia. Descobre que ele foi mandado pra lavanderia… e sumiu. É aí que algo muda no ar. Conforme Júlio segue as pistas e mergulha nessa busca estranha, a história, que parecia só mais uma aventura infantil, começa a escorregar pra outro lugar. O clima fica esquisito, não abertamente assustador, mas com uma estranheza leve, como se a realidade estivesse desfazendo os contornos aos poucos.

Uma das primeiras coisas que entregava o clima estranho eram os fantoches. Não os bonecos do Cocoricó, que já conhecíamos bem, mas figuras novas, de aparência menos amigável, quase inquietante. Como a idosa de nome alemão impronunciável, Fraulein, que aparece por volta do minuto 9. Ela surge de forma abrupta, com trejeitos rígidos, voz engasgada e um rosto que beira o grotesco. Uma cabeça enorme que parecia ter três queixos. Essa figura, misturada ao cenário artesanal, gerava uma dúvida que não era racional, mas sensorial: isso aqui é pra criança mesmo? Além disso, reassistindo agora já na idade adulta, é fácil perceber que o filme conta com vários momentos de sonoplastia de terror, com sons de fundo que causam calafrios.

Mais de vinte anos depois, o especial é lembrado não pela história em si, mas pela sensação. Uma atmosfera silenciosamente deslocada, que parecia romper alguma expectativa implícita sobre o que era “seguro” num programa infantil. Anos depois, ao reaparecer no YouTube, os comentários se alinharam: “Achei que fosse um delírio coletivo”, “Me dava medo real”, “Essa música me persegue até hoje”. O que ficou não foi saudade, mas uma sensação esquisita que insistia em voltar.

Não era o enredo que inquietava. Nem os personagens, isoladamente. O que marcava era o clima, a ausência de explicações, a sensação de que a história era contada de dentro da mente de uma criança – uma que ainda não distingue direito o que é real, o que é sonho, o que é invenção. A lavanderia vira um portal para a ilha de Melakunka, habitada por criaturas de nomes nonsense como “Pato Que Ri” e “Criatura”. Isso sem falar do pelicano excêntrico, que era piloto de avião. Nada ali se justifica, tudo só acontece. E é justamente por isso que gruda na memória – porque toca o estranho sem anunciar.

Os cenários, feitos com tecidos, caixas e objetos domésticos, reforçam essa ambiguidade. Lembram cabaninhas improvisadas, mas sempre com algo torto, um detalhe fora do lugar, uma sombra a mais. Os bonecos não piscam. Observam. Os espaços parecem feitos para brincar, mas emitem um desconforto surdo, como acordar no próprio quarto e notar que algo está sutilmente errado.

No centro disso tudo, a música. A canção-tema repete o mesmo verso como um mantra girando em círculos: “Cadê o Léo, o Léo onde é que está?” Mas ela não leva a lugar nenhum. Ela só repete. E gruda. Muitos adultos relatam lembrar da música surgindo do nada, anos depois, como um fragmento esquecido que o corpo guardou. Ela não era apenas trilha – era um vínculo invisível entre o que se perdeu e o que nunca se explicou.

A sensação mais profunda é a de perda. Júlio busca algo amado que sumiu sem razão. E quando reencontra… já não é o mesmo. Léo voltou, mas algo se quebrou com a perda, com o luto e com a busca bizarra. Essa virada silenciosa é um luto sem nome, uma ausência disfarçada de final feliz. Uma espécie de aprendizado invisível: o que some pode voltar, mas nem sempre volta igual.

Talvez seja por isso que tantos adultos hoje revisitam o especial com um desconforto que não conseguem traduzir. Não era medo de monstros. Era a percepção, ainda que embrionária, de que o mundo não garante devolução. "Cadê o Léo?" era um ritual disfarçado. Um jeito torto de dizer à infância que existe sombra – e que, um dia, ela chega.

E talvez a coisa mais potente – e mais sutil – seja essa: usar espuma pra falar de perda. Fantoches pra falar de ausência. Canções de roda pra falar de luto. E por isso ficou. Entrou fundo, numa dobra da memória, onde as coisas que doem e encantam moram juntas.

Assistir hoje, com olhos crescidos, é como voltar a um sonho meio apagado. Você reconhece os gestos, os sons, as texturas. Mas agora entende. E aí percebe que a máquina de lavar não era só uma máquina. Era um portal simbólico. O começo. Um aviso mudo de que até o que a gente ama pode desaparecer. E, se voltar… talvez já não caiba mais no mesmo colo.

Então, quando alguém canta “Cadê o Léo…”, não está só evocando uma lembrança de infância. Está, sem perceber, chamando de volta uma parte de si que ainda busca – não um brinquedo, mas o que se perdeu na travessia. E que talvez nunca volte do mesmo jeito.

Se quiser assistir a esse nostálgico e bizarro filme infantil, é só clicar abaixo!

Aqui vão alguns comentários selecionados, retirados do Youtube:

@leu5: "Meu trauma de infância e de todas as crianças da década de 90"
@RafaelPassarin13: "Eu ficava cantando 'cadê o Leo, cadê o Leo, o Leo onde é que está?' e só agora fui descobrir que era desse programa kkkk"
@camilaamaral1518: "Nossa, quando eu era pequena eu fiquei tão triste que o Léo sumiu kkkkkk chorava horrores, mas nunca tinha assistido o final. Que nostalgia!!!!"
@victorachutti1039: "Nossa, que presente poder encontrar essa série aqui. (...) Tinha 5 anos quando assisti, e tinha poucas lembranças, mas sabia que era algo que me marcou muito e me deu uma sensação que nunca havia sentido até então. Pra mim não era medo, mas um sentimento enigmático de mistério e fantasia."

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Mortal Kombat 4 (PS1)


Alguns jogos envelhecem bem. Outros azedam. Mas tem aqueles que desafiam qualquer categoria, como uma fita VHS esquecida no painel de um carro sob o sol: derretida, esquisita, mas ainda brilhando por dentro. Mortal Kombat 4 é um desses. Um jogo que parece ter sido feito sem a menor intenção de durar, e talvez por isso mesmo tenha sobrevivido – não nos rankings, mas em algum canto alternativo da memória.

Nunca joguei MK4 de verdade. Nunca tive o disco, nem o console. O que eu tive foi um amigo – o único com um PS1 à época – e o privilégio de assistir de fora. Sentada no chão da sala dele, pernas cruzadas, cabeça meio torta, via tudo como quem observa uma janela pro futuro. Porque até então minha referência era outra: MK3 Ultimate e suas versões de fliperama, todas ainda grudadas naquela estética 2D, sombria e pixelada, meio teatro de sombras, meio filme de terror. E aí, do nada, aquilo virou outra coisa. Os personagens ganharam volume, mas pareciam modelados em barro seco. Personagens novos que eu nunca tinha visto e cores bem curiosas. Hoje, quando revisito MK4, não vejo só um jogo. Vejo uma cápsula do tempo: tosca, falha, mas vibrando.

MK4 flertou, pela primeira vez na franquia, com o 3D. MK4 foi o primeiro MK a trocar os antigos sprites digitalizados por modelos poligonais, mergulhando de vez numa estética tridimensional. Mas esse 3D não era total: os combates ainda aconteciam em linha reta, com um botão que permitia um leve desvio lateral, mais performático do que prático. Ainda assim, algo mudou. Pela primeira vez, o jogo dava sinais de profundidade: os personagens não pareciam mais colados no fundo, e o espaço entre eles ganhava volume, mesmo que simbólico. Era uma ilusão tátil de avanço, como se o cenário respirasse em uma dimensão um pouco maior que a do 2D puro.

E com isso, veio também uma tentativa de reinventar a própria mitologia da série. Pela primeira vez, o vilão não era um brutamonte qualquer. Era um deus caído. Shinnok trazia uma vilania sofisticada e divina. Era, afinal,  uma deidade corrompida, gananciosa e que se achava "por direito" de conquistar tudo. Um ex-Elder God, exilado, ressentido, conspirando em silêncio. Sua presença transformava o jogo numa espécie de drama metafísico. Como se o Mortal Kombat tivesse saído da arena e escorregado pra dentro de um culto.

Mas o eixo narrativo verdadeiro era Quan Chi. Primeiro jogo em que ele aparece jogável, e já parecia maior que a própria tela. Pálido como osso, olhos vermelhos, movimentos secos e elegantes, e aquela aura de quem manipula os fios por trás da cortina. Ele não só libertou Shinnok do Submundo, mas costurou tudo ao redor com astúcia e trapaça. Não era só vilão, era cérebro. Uma espécie de Maquiavel necromante, operando no campo da estratégia. Enquanto os inimigos anteriores eram soco e magia bruta, Quan Chi era diplomacia e ilusão. E esse deslocamento de força pra inteligência mudou o tom inteiro da lore do jogo, ainda que momentaneamente.

Mesmo tropeçando nos aspectos técnicos, MK4 conseguiu montar um panteão que fazia sentido dentro da sua própria estranheza. Mas era um panteão instável, quase improvisado. Os novos personagens surgiam como figuras em busca de um lugar, ideias ainda meio soltas tentando se fixar no caos. Havia algo de inacabado neles – como se tivessem sido esboçados com pressa, sem tempo de descobrir quem realmente eram. Alguns pareciam versões diluídas de arquétipos já conhecidos, repetindo papéis com outros rostos. Outros até traziam certa ousadia, mas não conseguiam escapar da sombra dos veteranos. No fundo, havia no jogo um esforço genuíno de criação e iuovação, mesmo quando tudo ao redor parecia ruir.

Visualmente, o jogo é um espetáculo de imperfeição. Modelos rígidos, texturas com cara de areia molhada, olhos estáticos, bocas que mal se movem. Cores dissonantes que nunca entravam num acordo: laranjas gritavam, verdes quase neon saltavam da tela, e os azuis tinham um gelo que cortava. Não havia suavidade entre os tons, como se cada textura tivesse vindo de um mundo diferente, colada ali no improviso. No fim, tudo formava um mosaico meio torto, mas curioso: uma colagem de estéticas que não combinavam, mas davam ao jogo um charme próprio, estranho e impossível de esquecer. E às vezes me pergunto: será que não é exatamente isso que falta em tantos jogos de hoje? Essa coragem de ser bizarro. De errar o tom. De tentar algo, mesmo que saia torto.

Voltar a MK4 hoje é como abrir uma caixa de sonhos pela metade. Talvez não tenha acertado em quase nada. Mas tentou. Tentou reinventar um universo que já podia estar virando fórmula, tentou expandir o horizonte da franquia com novos mitos, novas texturas, novas intenções. Nos deu Shinnok e Quan Chi, nos deu um léxico novo pra luta. E mesmo eu, que só vi esse jogo com olhos de criança curiosa, sentada ao lado de quem jogava de verdade, fui atravessada por ele de um jeito único, em especial na sua estética e na inovação de introduzir tantos personagens novos.

MK4 não é só um jogo. É uma dobra no tempo. Um espaço intermediário. Um instante esquisito entre o que estava morrendo e o que ainda nem tinha sido inventado. É aquele momento estranho, um glitch, em que o erro vira identidade. A estranheza vira originalidade. E isso, pra mim, sempre vai ter mais valor do que a perfeição.

NOTA:
7
/10

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Os Padrinhos Mágicos


Se você foi uma criança dos anos 2000, talvez tenha lembranças bem vívidas de chegar da escola, largar a mochila no canto da sala e correr para a TV com um prato de bisnaguinhas com requeijão na mão. Era sagrado. E, ali, entre uma mordida e outra, uma dose diária de caos colorido te esperava: "Os Padrinhos Mágicos". Aquele desenho elétrico, barulhento, cheio de absurdos visuais e narrativos, e que, curiosamente, mesmo com todo o escândalo, carregava uma tristeza difícil de nomear. Era como se aquele menino de boné rosa e seus padrinhos-fada soubessem, em algum nível, que crescer ia doer. E talvez fosse essa a grande mágica do desenho: rir como quem esquece por um instante o peso que carrega nos olhos.

Criado e lançado em 2001, "Os Padrinhos Mágicos" não se pareciam com nada – a não ser com "Danny Phantom", do mesmo criador do desenho, lançado três anos mais tarde. O traço era duro, com cores vivas e personagens que pareciam ter sido desenhados num momento de impulso. Nada ali era polido – e talvez por isso mesmo, tudo era absurdamente vívido. A história girava em torno de Timmy Turner, um menino de 10 anos com pais sempre ocupados demais, uma babá que flertava com o sadismo e um segredo que mudaria tudo: fadas madrinhas que realizavam desejos. O que poderia dar errado? Tudo, claro. Porque Timmy, com seus desejos impensados, vivia provocando desastres cósmicos, invertendo lógicas, bagunçando universos. Mas, entre piadas escrachadas e confusões surreais, o que se revelava era um espelho torto da infância – aquele tempo onde nada fazia sentido, mas tudo era urgente.

Havia um subtexto quase cruel por trás do humor. Os adultos eram caricaturas de inutilidade ou loucura – o pai idiota, a mãe alienada, o professor Crocker obcecado por fadas ao ponto da insanidade. Só restava a Timmy a magia – essa entidade que prometia ordem, mas trazia ainda mais caos. E é curioso como o desenho fazia tudo parecer engraçado, mesmo quando, no fundo, o que estava sendo dito era: crescer é ser ignorado, e sobreviver exige imaginação.

Foi na fase clássica, ali entre 2001 e 2006, que a série brilhou com mais força. Os roteiros eram imprevisíveis, cheios de reviravoltas, e havia sempre uma sombra passando pelas entrelinhas: o medo de ser esquecido, o desejo de ser visto. Cosmo, o idiota adorável; Wanda, a racional sensata; Timmy, o garoto tentando fazer sentido do mundo com um chapéu rosa e uma vara mágica. Era um trio que funcionava porque se equilibrava na corda bamba entre o absurdo e o afeto.

Com o tempo, o desenho cresceu em ambição. Vieram os filmes, os especiais, os episódios duplos, as dimensões paralelas, os crossovers com Jimmy Neutron – a trilogia de filmes "Jimmy e Timmy: O Confronto" (2006). O longa-metragem "A Caçada dos Padrinhos Mágicos" (2006) por exemplo, é uma pérola que talvez só agora, revendo com olhos de adulto, a gente perceba a genialidade. Uma viagem satírica por referências de cultura pop – de "Dragon Ball Z" a "Scooby-Doo" – tudo costurado por um discurso metalinguístico que, de algum modo, conversava com a ansiedade moderna: a necessidade de escapar, de mudar de canal, de estar em todo lugar ao mesmo tempo.

Era um desenho que conseguia ser infantil e sofisticado sem parecer pretensioso. Só que, como tudo que tenta durar demais, a mágica começou a vacilar. A chegada de Poof, o bebê mágico, foi o primeiro sinal de que algo estava mudando. Isso aconteceu logo no início da 6ª temporada, em 2008. A série parecia buscar novos encantos para manter a audiência, mas perdia o coração do absurdo original. Ainda havia bons momentos, claro. Mas tudo era diferente. As mudanças seguintes foram mais bruscas. Em 2013, a entrada da nova personagem, uma tal de Chloe, dividindo os padrinhos com Timmy, não caiu bem. Os fãs não engoliram. O traço se tornou ainda mais saturado, as piadas, menos afiadas. Parecia uma tentativa desesperada de reinventar o que já tinha sido brilhante. O coração do desenho, aquele caos emocional e sensível que batia por baixo da gritaria, foi se apagando aos poucos.

E então veio talvez o episódio mais estranho e dolorosamente maduro da série: “O Pedido Secreto de Timmy!” (2011). Nele, descobrimos que Timmy, sem que ninguém soubesse, havia desejado que o tempo parasse. Ninguém mais envelheceria. Nem ele, nem Cosmo, Wanda, Poof... nem ninguém. Durante 50 anos, o mundo ficou congelado numa infância artificial – uma bolha de negação tão perfeita que ninguém notou. Quando o Conselho das Fadas descobre, Timmy é julgado, e tudo precisa ser corrigido: o tempo volta, todos envelhecem de uma vez, ele perde os padrinhos. Esquece tudo. E talvez o que mais machuque seja isso: ele nem sabe o que perdeu. Não sente falta, não chora por ninguém – só segue, como quem acorda de um sonho e não percebe que algo se perdeu no meio do caminho. A vida volta a andar, e pra ele parece normal. Mas a gente viu. A gente lembra. Sabemos do que ele abriu mão sem saber, e é aí que a coisa aperta – nesse abismo entre o que ele vive e o que a gente não consegue esquecer. É como se, de repente, toda a magia da infância escorregasse pelos dedos, sumindo sem deixar rastros. O que ele queria, no fundo, era continuar criança. O preço foi nem ao menos lembrar que um dia foi. Esse episódio virou uma bomba emocional dentro do fandom. Alguns o consideram brilhante, uma espécie de confissão involuntária sobre o medo de crescer. Outros detestam, por parecer uma tentativa forçada de encerrar a história. Mas, pra mim, é uma pequena obra-prima do incômodo. A mágica sempre teve um preço, e Timmy, como qualquer um de nós, só queria que as coisas não mudassem. O problema é que querer que nada mude também é um tipo de morte. E o desenho entendeu isso melhor do que muita gente grande.

Apesar das mudanças e tropeços, há momentos icônicos que ficaram gravados na memória com tinta permanente. O episódio em que Timmy navega pela internet como se estivesse surfando em uma autoestrada de dados (2x23) é puro suco dos anos 2000. Os crossovers com Jimmy Neutron, mesmo com aquele 3D esquisito que deixava Cosmo com cara de brinquedo derretido, tinham um charme nostálgico impossível de replicar. Há algo de muito verdadeiro nesse eco. Porque o desenho, mesmo nos seus momentos mais ridículos, sabia tocar em nervos que não se curam com o tempo.

E talvez seja por isso que "Os Padrinhos Mágicos" ainda ressoem tanto. Porque eles não eram só sobre desejos, varinhas ou peixes-dourados no aquário. Eram sobre a sensação de não caber no mundo. Sobre querer desaparecer e, ao mesmo tempo, desesperadamente, ser encontrado. Eram uma linguagem secreta para crianças que se sentiam deslocadas. Uma forma de dizer “me escuta” sem precisar gritar. E hoje, olhando pra trás, eu entendo: todos nós já fomos Timmy Turner por alguns instantes. Já quisemos congelar o tempo, manter aquilo que amamos do jeitinho que estava. Mas a vida, diferente dos desenhos, não deixa a mágica durar pra sempre. E, tudo bem. Porque às vezes o que fica, mesmo quando tudo se apaga, é o que aprendemos entre um desejo e outro. 

Se eu tivesse um único desejo, talvez escolheria voltar a ser criança, de volta à época em que a única preocupação era não perder aos melhores episódios dos meus desenhos favoritos na TV! E o seu, qual seria?