quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Mortal Kombat 4 (PS1)


Alguns jogos envelhecem bem. Outros azedam. Mas tem aqueles que desafiam qualquer categoria, como uma fita VHS esquecida no painel de um carro sob o sol: derretida, esquisita, mas ainda brilhando por dentro. Mortal Kombat 4 é um desses. Um jogo que parece ter sido feito sem a menor intenção de durar, e talvez por isso mesmo tenha sobrevivido – não nos rankings, mas em algum canto alternativo da memória.

Nunca joguei MK4 de verdade. Nunca tive o disco, nem o console. O que eu tive foi um amigo – o único com um PS1 à época – e o privilégio de assistir de fora. Sentada no chão da sala dele, pernas cruzadas, cabeça meio torta, via tudo como quem observa uma janela pro futuro. Porque até então minha referência era outra: MK3 Ultimate e suas versões de fliperama, todas ainda grudadas naquela estética 2D, sombria e pixelada, meio teatro de sombras, meio filme de terror. E aí, do nada, aquilo virou outra coisa. Os personagens ganharam volume, mas pareciam modelados em barro seco. Personagens novos que eu nunca tinha visto e cores bem curiosas. Hoje, quando revisito MK4, não vejo só um jogo. Vejo uma cápsula do tempo: tosca, falha, mas vibrando.

MK4 flertou, pela primeira vez na franquia, com o 3D. MK4 foi o primeiro MK a trocar os antigos sprites digitalizados por modelos poligonais, mergulhando de vez numa estética tridimensional. Mas esse 3D não era total: os combates ainda aconteciam em linha reta, com um botão que permitia um leve desvio lateral, mais performático do que prático. Ainda assim, algo mudou. Pela primeira vez, o jogo dava sinais de profundidade: os personagens não pareciam mais colados no fundo, e o espaço entre eles ganhava volume, mesmo que simbólico. Era uma ilusão tátil de avanço, como se o cenário respirasse em uma dimensão um pouco maior que a do 2D puro.

E com isso, veio também uma tentativa de reinventar a própria mitologia da série. Pela primeira vez, o vilão não era um brutamonte qualquer. Era um deus caído. Shinnok trazia uma vilania sofisticada e divina. Era, afinal,  uma deidade corrompida, gananciosa e que se achava "por direito" de conquistar tudo. Um ex-Elder God, exilado, ressentido, conspirando em silêncio. Sua presença transformava o jogo numa espécie de drama metafísico. Como se o Mortal Kombat tivesse saído da arena e escorregado pra dentro de um culto.

Mas o eixo narrativo verdadeiro era Quan Chi. Primeiro jogo em que ele aparece jogável, e já parecia maior que a própria tela. Pálido como osso, olhos vermelhos, movimentos secos e elegantes, e aquela aura de quem manipula os fios por trás da cortina. Ele não só libertou Shinnok do Submundo, mas costurou tudo ao redor com astúcia e trapaça. Não era só vilão, era cérebro. Uma espécie de Maquiavel necromante, operando no campo da estratégia. Enquanto os inimigos anteriores eram soco e magia bruta, Quan Chi era diplomacia e ilusão. E esse deslocamento de força pra inteligência mudou o tom inteiro da lore do jogo, ainda que momentaneamente.

Mesmo tropeçando nos aspectos técnicos, MK4 conseguiu montar um panteão que fazia sentido dentro da sua própria estranheza. Mas era um panteão instável, quase improvisado. Os novos personagens surgiam como figuras em busca de um lugar, ideias ainda meio soltas tentando se fixar no caos. Havia algo de inacabado neles – como se tivessem sido esboçados com pressa, sem tempo de descobrir quem realmente eram. Alguns pareciam versões diluídas de arquétipos já conhecidos, repetindo papéis com outros rostos. Outros até traziam certa ousadia, mas não conseguiam escapar da sombra dos veteranos. No fundo, havia no jogo um esforço genuíno de criação e iuovação, mesmo quando tudo ao redor parecia ruir.

Visualmente, o jogo é um espetáculo de imperfeição. Modelos rígidos, texturas com cara de areia molhada, olhos estáticos, bocas que mal se movem. Cores dissonantes que nunca entravam num acordo: laranjas gritavam, verdes quase neon saltavam da tela, e os azuis tinham um gelo que cortava. Não havia suavidade entre os tons, como se cada textura tivesse vindo de um mundo diferente, colada ali no improviso. No fim, tudo formava um mosaico meio torto, mas curioso: uma colagem de estéticas que não combinavam, mas davam ao jogo um charme próprio, estranho e impossível de esquecer. E às vezes me pergunto: será que não é exatamente isso que falta em tantos jogos de hoje? Essa coragem de ser bizarro. De errar o tom. De tentar algo, mesmo que saia torto.

Voltar a MK4 hoje é como abrir uma caixa de sonhos pela metade. Talvez não tenha acertado em quase nada. Mas tentou. Tentou reinventar um universo que já podia estar virando fórmula, tentou expandir o horizonte da franquia com novos mitos, novas texturas, novas intenções. Nos deu Shinnok e Quan Chi, nos deu um léxico novo pra luta. E mesmo eu, que só vi esse jogo com olhos de criança curiosa, sentada ao lado de quem jogava de verdade, fui atravessada por ele de um jeito único, em especial na sua estética e na inovação de introduzir tantos personagens novos.

MK4 não é só um jogo. É uma dobra no tempo. Um espaço intermediário. Um instante esquisito entre o que estava morrendo e o que ainda nem tinha sido inventado. É aquele momento estranho, um glitch, em que o erro vira identidade. A estranheza vira originalidade. E isso, pra mim, sempre vai ter mais valor do que a perfeição.

NOTA:
7
/10