domingo, 15 de dezembro de 2024

O Beijo do Vampiro (2002)


O ano era 2002. Eu tinha apenas 6 aninhos, mas não perdia um episódio. Hoje, aos 28, estou reassistindo pela primeira vez essa obra-prima da cinematografia brasileira dos Anos 2000. Na análise de hoje, vou apresentar tudo — e mais um pouco — sobre a novela que marcou minha infância de forma irreversível. Embora eu seja suspeita para falar, já que "O Beijo do Vampiro" (2002–2003) ocupa um lugar especial no meu coração nostálgico, tentarei mostrar por que essa novela entrou para a história da TV brasileira, revolucionando-a como nenhuma outra.

Assistir O Beijo do Vampiro era como abrir um livro de contos góticos enquanto, ao fundo, tocava a trilha sonora da vida cotidiana brasileira. A novela, exibida pela TV Globo entre 2002 e 2003, parecia destinada a deixar uma marca ao misturar romance, comédia e elementos sobrenaturais de uma maneira que ninguém imaginava ver no horário das sete. Antônio Calmon, com sua escrita única, e a direção afiada de Roberto Naar e Marcos Paulo, criaram algo que era ao mesmo tempo leve e carregado de um simbolismo irresistível.

Tudo começa com Cecília (Flávia Alessandra), uma princesa medieval reencarnada como Lívia, mãe do protagonista, em pleno século XXI. O destino dela se enrosca, de novo, com o vampiro Bóris Vladescu (Tarcísio Meira), seu amor eterno e nem tão romântico assim. Bóris, de volta à vida de Lívia após séculos, não quer apenas reacender a chama desse amor proibido — ele também tem planos maiores envolvendo o filho dela, Zeca (Kayky Brito), meio-vampiro e futuro herdeiro de um legado sombrio.

Zeca, ou José Carlos, é um garoto de 12 anos que, ao se aproximar de seu 13º aniversário no dia das bruxas, enfrenta um dos dilemas mais profundos da novela. Filho biológico do vampiro Bóris Vladescu, mas criado com amor por Lívia, ele vive uma batalha constante entre o bem e o mal. Sua índole genuinamente boa, marcada por honestidade e coragem, contrasta fortemente com o destino sombrio que o aguarda: tornar-se o Príncipe das Trevas, mais poderoso que o próprio Bóris. Apesar de herdar instintos cruéis de seu pai, os valores transmitidos por sua mãe e sua força moral permitem que Zeca desafie seu destino, mesmo quando descobre habilidades sobrenaturais, como ler pensamentos e controlar outros vampiros. A atuação genial de Kayky Brito dá vida a esse conflito interno, capturando com perfeição o terror de Zeca em sucumbir ao lado sombrio e a bravura necessária para lutar por sua humanidade.

Mas não era só isso. A trama sabia como entrelaçar humor, drama e fantasia de uma maneira fascinante. Enquanto Galileu (Luis Gustavo), o atrapalhado caçador de vampiros, garantia momentos cômicos com seu charme desajeitado, sua parceria com Zoroastra (Glória Menezes) elevava a narrativa. Zoroastra, uma figura excêntrica e mediúnica, dona de uma pensão e fascinada por esoterismo, não só era uma avó protetora e cheia de camadas emocionais, mas também uma aliada poderosa contra as forças das trevas. Além disso, o embate entre bem e mal ganhava força com a chegada de Ezequiel, o anjo guardião disfarçado de padre, que vai à cidade sob o pretexto de reformar a igreja, mas na realidade trava uma batalha mitológica contra Bóris e outros vampiros. Essa luta, por sua vez, encontra na alquimia e nas magias de Zoroastra um elo poderoso com o paganismo e forças místicas do bem.

Entre os destaques de O Beijo do Vampiro, Mina d'Montmartre, vivida por Claudia Raia, brilhou como uma vampira sofisticada e poderosa. Seu visual icônico, marcado por figurinos dramáticos inspirados nas criações góticas de Thierry Mugler, trazia uma combinação de rendas, bordados e tecidos luxuosos, sempre em tons de vinho, preto e roxo. A personagem, contudo, passou por adaptações únicas: devido à gravidez de Claudia durante as gravações, seus trajes foram ajustados sem perder a essência estilística. Além disso, a maquiagem marcante, com olhos delineados e próteses detalhadas, criava uma transformação impressionante em cenas que exigiam uma aparência envelhecida ou sobrenatural. Mina não apenas cativava pelo visual, mas também simbolizava a tensão entre sensualidade e mistério que permeava a trama.

A fictícia cidade de Maramores, construída nos estúdios da Globo (chamados, à época, de Projac), era mais do que um cenário: era um personagem vivo da narrativa. Dividida em duas áreas distintas, a cidade tinha uma parte antiga, com arquitetura inspirada em Praga (Capital da República Checa), marcada por vielas, becos e uma ponte que parecia saída de um conto gótico. Já a parte moderna era litorânea, com praias que contrastavam com o ar medieval do outro lado, criando um equilíbrio visual fascinante. Essa dualidade refletia as tensões da trama entre o passado sombrio e o presente vibrante. 

A trilha sonora foi um dos pilares da atmosfera espiritual e mitológica da novela. Canções como "Ameno - Remix ERA", "Forgive - Vater Unser" e "Fairy Tale - Shaman" capturaram a essência da luta entre luz e trevas, evocando um cenário que mistura o maniqueísmo mitológico do cristianismo, com suas figuras angelicais como Ezequiel, e a espiritualidade pagã representada por Zoroastra e suas práticas alquímicas. As músicas transcenderam o simples entretenimento, criando uma aura de mistério e tensão que intensificava cada momento dramático.

Sem falar nas influências estéticas que flertavam com o gótico e o medieval, evocando inspirações como Drácula de Bram Stoker (1992) e O Baile dos Vampiros (1967). Tudo isso resultou numa mistura de mistério, leveza e um toque contemporâneo. O núcleo dos vampiros trazia detalhes curiosos: dilemas éticos sobre substituir sangue humano por “importado” e até o uso de cremes anti-água benta quebravam clichês com humor. Ainda assim, elementos universais, como puberdade e conflitos familiares, se entrelaçavam à narrativa, dando um toque de humanidade às tramas sobrenaturais.

Por fim, ainda havia aquela conexão nostálgica com Vamp (1991), outra novela que marcou época. Apesar de não ser uma continuação direta, O Beijo do Vampiro não resistiu a pequenos acenos à predecessora, como o retorno de Ney Latorraca, agora no papel de Nosferatu. Essa brincadeira de referências era a cereja no bolo para os fãs mais atentos. (Inclusive, o renomado ator e diretor faleceu aos 80 anos poucos dias após eu publicar esse post.)

É importante mencionar que, antes de cada episódio de O Beijo do Vampiro, atualmente, o Globoplay mostra o seguinte aviso: "Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada". É uma introdução necessária, já que, em diversos momentos, o humor da novela traz nuances que hoje soam problemáticas, com piadinhas que incorporam homofobia, racismo e machismo. Claro, é preciso cuidado para não cair em anacronismos; afinal, a trama reflete os valores e a mentalidade predominante do início dos Anos 2000. Ainda assim, esse tipo de disclaimer mostra uma preocupação em contextualizar o conteúdo, oferecendo aos espectadores a chance de revisitar a obra com um olhar mais crítico e alinhado às discussões sociais de hoje.

Ao revisitar a novela 22 anos após sua estreia original, embora seja impossível ignorar seus defeitos anacrônicos, O Beijo do Vampiro continua se destacando pela qualidade narrativa e de produção. Os diálogos, muito bem escritos, e a trilha sonora impecável são elementos que, ao lado do cuidado com figurinos e cenografia, deixam muitas produções atuais no chinelo. Assistir hoje, com 28 anos, revela não apenas a nostalgia, mas também o quanto essa obra permanece relevante e cativante para quem gosta de uma boa história que mistura emoção, fantasia e um toque de humor — tudo isso envolto em uma narrativa que, ao mesmo tempo, evoca o gótico, o místico e as nuances da luta eterna entre bem e mal.